INTRODUÇÃO AO MUNDO DA BÍBLIA
(uma colaboração do Padre Ataliba Scheider)
3ª PARTE
9 – O autor da Bíblia
Tudo isso não se fez num dia. Foi um longo processo que durou séculos. Muita gente colaborou. A Bíblia, portanto, surgiu aos poucos como fruto da inspiração divina e do esforço humano. Ela é o resultado final de uma longa caminhada, fruto da ação de Deus que quer o bem das pessoas, e do esforço dos homens que querem conhecer e praticar a vontade de Deus. Ou seja, a Bíblia é o fruto de um prolongado “mutirão” comunitário do povo que procurava descobrir, praticar, escrever e transmitir aos outros a Palavra de Deus presente na vida.
10 – Podemos comparar a Bíblia a um jornal
Ora, quem garante essa unidade da linha editorial é a pessoa que cuida do jornal, como um todo, e que menos aparece: o editor-chefe ou diretor de redação. Ele não costuma assinar artigos, reportagens ou editoriais. Mas é ele o responsável pela linha editorial do jornal.
Da mesma forma, o editor-chefe da Bíblia é Deus. Os nomes dos jornalistas, articulistas e repórteres são Moisés, Davi, Isaías, Lucas, Paulo, João, Tiago, etc. São estes alguns nomes que aparecem assinando os textos bíblicos. Mas quem inspirou tudo, quem garantiu a unidade e a harmonia de seu conteúdo, foi o próprio Deus. É Ele o principal autor da Bíblia.
11 - A inspiração bíblica
Na redação do texto bíblico, o escritor humano teve a sua contribuição. Cada pessoa tem o seu estilo próprio, escrevendo de um modo todo particular. O autor bíblico, quando escreve, não está inconsciente nem a sua mão é conduzida por Deus, de maneira a escrever aquilo que não está pensando. Pelo contrário, o autor bíblico está plenamente consciente do que escreve, escrevendo do seu jeito, com o seu estilo, usando os gêneros literários de que mais gosta. A personalidade do autor sagrado é respeitada e a sua contribuição é importantíssima. Ele transmite, de modo humano, à sua maneira, a verdade que Deus quer revelar-nos. Não é possível, pois, entender a “inspiração” do texto bíblico como se fosse ditado por Deus, ou como se o autor sagrado ouvisse uma voz do alto, a voz de Deus, dizendo o que deveria ser escrito. Não que Deus não pudesse falar, e que não tenha falado, algumas vezes, diretamente. Quando encontramos na Bíblia as expressões “o Senhor me falou”, “ouvi o Senhor que me dizia”, nos deparamos com um recurso literário. O mesmo se pode dizer em relação às visões. É indiscutível que Deus possa aparecer ou provocar visões, mas, na maioria dos casos, elas são também um recurso literário para dar mais força à mensagem. São famosas, por exemplo, as visões do Apocalipse. Seu autor (São João) faz uso desse tipo de relato, porque as visões fazem parte do gênero literário apocalíptico. O importante é descobrir o que o autor quer transmitir na forma com que escreve.
O autor humano que escreve, sob a inspiração divina, o Livro Sagrado, também se expressa, colocando algo de si mesmo, do seu modo de ser e de ver as coisas. A vivência profunda da experiência de Deus, feita pelo seu Povo, também está ali colocada. Em vista disso, há um forte apelo. É Deus quem apela à humanidade, chamando-a a viver da sua vida. E é o autor humano que apela aos seus leitores, chamando-os à conversão, animando-os e exortando-os a seguir em frente.
Importa ressaltar que a inspiração divina se restringe, unicamente, à matéria de caráter religioso, àquilo que se relaciona com a nossa salvação. Não é intenção da Bíblia, portanto, ensinar história, geografia, biologia, ciência..., mas religião, teologia. O grande perigo é de a gente ler a Bíblia como quem lê um livro de receitas científicas (como foi criado o universo, como surgiu a humanidade sobre a terra, como se movem os astros no céu, como está organizado o universo, etc.?); ou como quem lê um livro de receitas históricas (como viviam os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, como aconteceram exatamente as dez pragas do Egito, como foi mesmo a travessia do Mar Vermelho, como foi a infância de Jesus, como vivia a comunidade cristã primitiva, etc.?); ou como quem lê um livro de receitas morais (como devo agir em qualquer situação possível e imaginável da minha vida...?); ou como quem lê um livro de receitas teológicas (neste caso estaríamos olhando a Bíblia como palavra sobre Deus, e não como Palavra de Deus).
12 –Lista dos livros inspirados
Lidos e relidos nas reuniões e nas celebrações do povo, esses livros foram adquirindo, aos poucos, uma grande autoridade. Tornaram-se o patrimônio sagrado do povo de Israel, porque lhe revelavam a vontade de Deus. Daí vem a expressão Sagrada Escritura.
Nós usamos a palavra lista, eles usavam uma palavra de origem grega, cânon (= norma, lista). Por isso, até hoje, se fala em livros canônicos para indicar a lista, o cânon dos livros sagrados, considerados inspirados por Deus. Esta lista de livros sagrados recebeu, mais tarde, o nome de Bíblia (ela nasceu sem nome).
Qual a diferença entre a Bíblia protestante e a Bíblia católica? A diferença provém da Bíblia hebraica, da Palestina, e a Bíblia grega, do Egito (Alexandria). Os rabinos judeus fixaram no ano 100 d.C., no Sínodo de Jâmnia (a 20 km ao sul de Jafa) a lista (cânon) dos livros do AT que eles consideravam inspirados por Deus. Foram aceitos somente os livros escritos na Palestina, em língua hebraica. Os protestantes, portanto, preferiram adotar a lista mais curta e mais antiga; já os católicos, seguindo o exemplo dos Apóstolos, ficaram com a lista mais comprida da tradução grega dos Setenta, a Septuaginta.
Há sete livros a menos na edição da Bíblia dos protestantes: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria e os dois Livros dos Macabeus. Estes Livros são chamados “deuterocanônicos”, isto é, são da segunda (deutero) lista (cânon).
São considerados livros “apócrifos” aqueles que não constam nessas listas, e que, portanto, não são considerados inspirados por Deus.
13 – Quando foi escrita a Bíblia?
14 – Em que língua foi escrita a Bíblia?
Durante o século II a.C., quando o povo judeu se achava espalhado por muitos países, os “Setenta” fizeram a tradução da Bíblia completa para o grego, em Alexandria, no Egito (a Septuaginta).
Pelo fim do século V d.C., quando o povo do Império Romano não entendia mais o grego, o Papa Dâmaso encarregou o monge Jerônimo (340-420) para fazer a tradução da Septuaginta para o latim vulgar (popular), então falado. Em 406 d.C., São Jerônimo entregou ao Papa a tradução latina da Bíblia, a assim chamada Vulgata. A partir dessa tradução oficial deveriam ser feitas todas as demais traduções da Bíblia.
Como reação contra a Reforma protestante, por 1570, proibiu-se a tradução e o manuseio da Bíblia, em vernáculo, para os leigos em geral. Esta proibição durou dois séculos, até o ano 1770.
Os papas, a partir do final do século XIX, passaram a estimular o uso e o estudo da Bíblia, especialmente do NT. No início do século XX foi fundado, em Roma, o Instituto Bíblico, todo ele voltado a essa tarefa, formando centenas de biblistas e exegetas. Em 1943 o Papa Pio XII publicou a encíclica “Divino afflante Spiritu”, que abria as portas para o estudo moderno e científico da Bíblia. O Concílio Vaticano II lançou o documento “Dei Verbum” sobre a Revelação e a Bíblia. Estes dois documentos provocaram uma renovação geral do estudo da Bíblia que é, atualmente, o centro do ensino da teologia, da pregação, da catequese e da liturgia. Por isso, hoje, não é cristão quem não adquire conhecimentos atualizados da Bíblia, e quem não a lê e sabe usá-la adequadamente.
15 - Gêneros literários
Se vamos comparar os diversos livros da bíblia entre si, notamos que existem muitas diferenças, não só no conteúdo que apresentam como, também, na forma e no jeito como o apresentam. Mesmo dentro de um livro, de capítulo para capítulo, existem diferenças. Por que acontece isto? Em primeiro lugar, porque a Bíblia não foi escrita por um só autor humano, mas por muitos. Sabemos que pessoas diferentes pensam e escrevem de maneiras diferentes. Em segundo lugar, porque os textos foram escritos em épocas diferentes, para pessoas (destinatários) diferentes, em situações diferentes, por autores diferentes.
O que determina a escolha de um gênero literário? Os autores bíblicos utilizaram diferentes gêneros literários para atingir melhor os fins que se propuseram. Assim, em uma situação de violação da Aliança feita com Deus, numa situação de opressão, cabe uma denúncia profética, e o autor bíblico usa o gênero literário da profecia. Numa situação de desesperança, talvez seja mais interessante olhar para trás, para a salvação que Deus realizou no passado, e que é garantia de salvação no presente, usa-se o gênero literário da narrativa histórica. Se a comunidade cristã está precisando de incentivo, envia-se uma carta (era o que fazia S. Paulo).
Um determinado gênero literário era usado, também, para que os ouvintes ou leitores entendessem e assimilassem melhor a mensagem. Um profeta, muitas vezes, colocava a sua mensagem na forma de poesia porque, além de dar à profecia a força das imagens poéticas, os versos eram mais facilmente guardados na memória do povo, e mais facilmente transmitidos.
O autor bíblico usará aquele gênero literário mais adaptado às suas características e à missão a ele confiada por Deus. Deus e os autores bíblicos humanos têm uma determinada intenção, uma determinada mensagem a transmitir e, para tanto, usam este ou aquele gênero literário.
Assim, os profetas escreverão ou pronunciarão profecias, e os livros sapienciais serão escritos pelos sábios, nos gêneros literários que lhes são próprios.
A palavra humana na Bíblia, muito mais que um impessoal relato de verdades históricas, científicas ou morais, reveste-se de calor e de arte. E, como arte, os seus autores utilizam vários gêneros literários, diversas formas de escrever: as formas próprias da literatura. É a literatura inspirada de um povo, nas formas singelas da poesia, da prosa e da dramatização.
Por isso, é importante levar em conta o gênero literário quando fazemos a nossa leitura da Bíblia. Caso contrário, podemos entender erradamente a mensagem e a intenção de quem quer comunicar-se conosco, o próprio Deus. Imaginemos a decepção de um namorado ao descobrir que a carta de amor, enviada á sua namorada, foi por ela entendida como um tratado filosófico sobre o amor. Pode parecer incrível, mas é isto que fazemos, muitas vezes, ao lermos a Bíblia, que é uma grande carta de amor de Deus à humanidade.
16 - A Bíblia é um livro diferente
A Bíblia não é um livro do passado. Não é uma relíquia. É um livro sempre atual. É palavra viva para os dias de hoje. Nós podemos descobrir-nos na Bíblia. Lendo a Bíblia, descobrimos que ela tem muito a ver com a nossa vida. Ela revela a nossa origem, nosso destino, nossa identidade, nosso caminho, nosso valor. Nela descobrimos o significado dos acontecimentos e o sentido da vida humana, a presença constante e amorosa de Deus na história da humanidade.
A Bíblia aconselha, exorta, repreende, questiona, julga, ilumina, educa, alimenta, ensina, corrige, critica abusos, denuncia erros e desvios, aponta rumos, indica caminhos.
17-Como ler a Bíblia hoje?
Hoje devemos ler a Bíblia de tal maneira que ela seja capaz de oferecer uma visão de fé sobre a nossa realidade, e descobrir nela o apelo de Deus para a nossa realidade.
Precisamos descobrir uma maneira de interpretar a Bíblia corretamente. A interpretação da Bíblia não depende só da inteligência e do estudo, mas também do coração e da ação do Espírito santo. Ela deve ser lida e interpretada na fé de que Deus nos fala por meio dela. Por isso, a leitura da Bíblia necessita de momentos de silêncio e de oração.
Para escutarmos a Palavra de Deus, através da leitura da Bíblia, necessitamos de uma atitude exterior de silêncio e uma atitude interior de fé. A fé é a chave para abrir a Bíblia e encontrar nela a Palavra de Deus. Quem tem fé enxerga na Bíblia mais do que as histórias que ela conta. Enxerga nela a Palavra de Deus. Ali é Deus quem nos fala através de palavras humanas, as únicas, aliás, que somos capazes de entender. A leitura da Bíblia exige óculos especiais para ser entendida: os “óculos da fé”.
É preciso, também, uma atitude de abertura: esta é um estado de espírito, uma atitude interior. Não podemos dirigir-nos à Bíblia com preconceitos, com idéias já formadas, definitivas, sem disposição de ouvir. Como poderá Deus plantar em nós a semente de sua Palavra se estamos fechados e apegados ás nossas próprias idéias.
É necessária, ainda, uma atitude de aceitação: esta já está, aliás, inerente à própria fé. Deus, porém, respeita a nossa liberdade. Ele nunca força ninguém a nada. Ele apenas propõe. De nossa parte é importante aceitar as suas propostas. Esta aceitação implica, muitas vezes, em abandonar as próprias idéias e projetos para acolher as idéias e abraçar os projetos de Deus.
Somente através dessas atitudes chegaremos ao verdadeiro conteúdo da Bíblia: DEUS.
Padre Ataliba Scheider