INTRODUÇÃO AO MUNDO DA BÍBLIA
(Uma colaboração do Padre Ataliba Scheider)
( A seguir, apresentamos o tema de forma contínua para que o leitor possa ter uma visão completa do assunto)
1 – Deus se revela e age na história
Esta atuação de Deus dá-se na História, que se torna História da Salvação. Ela começa nos primórdios da humanidade, passa pela história do povo de Israel, o Povo de Deus, no Antigo Testamento, e atinge o seu ponto alto em Jesus Cristo, continuando nos dias de hoje, até o fim dos tempos. É o amor de Deus revelando-se na história humana. Esta História de Salvação consta do diálogo, por palavras e ações, entre Deus e a humanidade. Toda a vida humana é essencialmente diálogo de Deus com a humanidade. A Bíblia surge desse e nesse diálogo: o diálogo entre Deus e os homens.
2.Duas formas de Deus revelar-se, de falar conosco
Mas nós, homens e mulheres, por causa dos nossos pecados, embaralhamos as letras desse “livro”, organizamos o mundo de tal maneira, e criamos uma sociedade tão desvirtuada, que já não é mais possível perceber,, claramente, a Palavra de Deus que quer revelar-se dentro da vida que vivemos. Por isso, Deus escreveu um segundo livro: o LIVRO DA BÍBLIA.
O mundo é como um grande livro em que todos podemos aprender a descobrir o rosto de Deus que nele se revela. O contato com a Bíblia nos dá uma visão nova, renovada deste mundo. Ela serve para iluminar e, assim, descobrirmos a Palavra de Deus presente nos fatos e na história de nossa vida. Por isso, quem lê e estuda a Bíblia, mas não olha a realidade do povo de ontem e de hoje, é infiel à Palavra de Deus.
Deus nos entregou, pois, dois livros: a Vida e a Bíblia. Uma ajuda a compreender melhor a outra. A Bíblia lê a Vida e a Vida lê a Bíblia. Deve-se interpretar a Bíblia, olhando a realidade, e interpretar a realidade a partir da Bíblia. A vida é a estrada na qual viajamos. A Bíblia é o mapa rodoviário que nos dá uma visão melhor da estrada e de suas ligações com outros caminhos. Quando olhamos a vida com os nossos próprios olhos, é como olhar a estrada sem o mapa rodoviário. Como nossa visão é curta, e nossos olhos são pequenos, neles cabe pouca coisa. Só vemos um detalhe de cada vez: esta curva, aquela árvore, aquela casa na encosta da montanha, etc. Impossível entender o desenho da estrada e o seu percurso completo.
Quando olhamos a vida pelas páginas da Bíblia, vemos a vida pelos olhos de Deus. É como ver a estrada no mapa rodoviário. Então entendemos o começo, o meio e o fim, as vias preferenciais e os atalhos, os locais para abastecer o carro e o motorista. Através da Bíblia, Deus nos empresta seus olhos para que possamos entender melhor a estrada da nossa Dois fios são necessários para se acender uma lâmpada. Duas coisas são necessárias para que se acenda em nós a lâmpada da fé: Bíblia e Vida. A Palavra de Deus e a realidade da vida. O nosso maior defeito, hoje, não é a falta de reflexão sobre as coisas da fé, contidas na Palavra de Deus, mas sim a falta de conhecimento da realidade e a falta de reflexão sobre a realidade à luz da fé.
Interpretar a Bíblia sem olhar a realidade da vida pessoal e social, a realidade de ontem e de hoje, é o mesmo que manter a luz debaixo da mesa, o sal fora da comida, a semente fora da terra. A semente é para a terra, e a terra é para a semente. A PALAVRA de DEUS isolada da REALIDADE, separada da VIDA, torna-se palavra vazia, palavra morta. Deixaria de ser DIÁLOGO. Nada teria a dizer-nos para a nossa vida real. Por outra parte, a REALIDADE sem a PALAVRA reveladora de Deus, fica sem sentido. Não se pode separar a Bíblia da Vida e a Vida da Bíblia.
3 – Conceito de Bíblia
A palavra Bíblia provém da cidade de Bíblos, na Fenícia, costa oriental do Mediterrâneo, uma das mais antigas cidades do mundo, do século III a.C. Cidade portuária. Servia de intermediária no vasto comércio do Mediterrâneo.
Os gregos compravam, em Biblos, papiros egípcios, dando o nome de “biblion” ao produto que dali importavam: “as coisas vindas de Biblos” (= bíblia).
Com o tempo, o termo foi aplicado a qualquer livro escrito em papiro e, no começo do Cristianismo, o nome biblion foi reservado para o livro mais importante para os cristãos.
A palavra “testamento” significa um pacto, uma aliança firmada com testemunhas. Trata-se, portanto, da Aliança entre Deus e o Povo. Da antiga e nova Aliança. É a história do amor de Deus para com a humanidade.
5 – Conteúdo da Bíblia
No AT encontramos: a criação do mundo, os grandes homens de fé, escolhidos por Deus: Noé, Abraão, Isaac, Jacó e José, Moisés e Josué, pessoas que sempre foram fiéis a Deus, atendendo aos chamados que Ele lhes fazia. Nele encontramos, ainda, os Profetas que anunciavam a chegada do Messias-Jesus, e que convocavam o Povo para a conversão e a fidelidade a Javé. Os maiores profetas foram: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. Podemos resumir o AT, dizendo que Deus escolhe um povo e o prepara para receber o Salvador. Todo o AT é uma preparação para a vinda de Jesus Cristo.
Há pessoas que pensam que os acontecimentos mais importantes do AT são: Adão e Eva, Caim e Abel, o Dilúvio, a Torre de Babel, etc. Não podemos perder-nos na periferia. É preciso ir ao cerne, ao principal. E o principal é que Deus prometeu salvar a humanidade do pecado e de suas conseqüências e, para isso, escolheu um Povo entre todos os povos da Terra, fez uma Aliança de amizade com esse Povo e o foi preparando para a chegada do Salvador.
O AT é a história do Povo de Israel. Um povo nem melhor nem pior que os demais povos, porém eleito por Deus para que nele nascesse Jesus Cristo. É a história de um povo que muitas vezes abandonou o Senhor, traindo a Aliança feita com Ele, e a quem o Senhor sempre perdoava e continuava guiando.
Todo o AT conta a história desse povo judeu, escolhido por Deus para trazer a Salvação ao mundo. Os diversos livros do AT tratam de temas distintos, como: a formação do Povo de Israel, suas leis, suas tradições, a história de sua independência e, acima de tudo, a Aliança, ou pacto de amizade que Deus fez como esse povo. No plano de Deus tudo isso tinha uma finalidade: preparar a Encarnação, a vinda ao mundo, do Filho de Deus, JESUS CRISTO.
O NT, através dos quatro Evangelhos que são o coração de toda a Bíblia, mostra a vida de Jesus, desde a sua Encarnação, seu nascimento, até a sua Ascensão ao Céu, o seu retorno para o Pai. Mostra como viviam os primeiros cristãos, em Atos dos Apóstolos. Relata o surgimento e a expansão da Igreja, particularmente nas Cartas do apóstolo São Paulo. O último livro é o Apocalipse. JESUS e o REINO de Deus são a mensagem mais importante do NT.
A Bíblia é como um álbum de fotografias. Nela tem de tudo. Na Bíblia encontramos os mais variados assuntos: doutrina, ensinamentos, instruções, histórias, provérbios, profecias, cânticos, orações, lamentações, cartas, sermões, meditações, biografias, poesias, parábolas, conselhos, genealogias, teologia, filosofia, romance, alegorias, contratos, alianças, culto...; coisas alegres e tristes; fatos concretos e narrações simbólicas; coisas do passado, do presente e do futuro. Na Bíblia há passagens que querem anunciar, comunicar esperança, coragem e amor; e há trechos que querem denunciar erros, desvios, pecados, opressões, injustiças; criticar abusos e apontar rumos.
6 – DEUS, principal conteúdo da Bíblia
De fato, um ateu pode ler ou estudar a Bíblia sob muitos aspectos, mas ele jamais dirá que ela contém a Palavra de Deus. Um estudioso de coisas antigas pode manusear a Bíblia, compará-la com outros escritos antigos, e não estar interessado na Palavra de Deus. Esta certamente lhe passará despercebida.
Nós mesmos, quando apenas lemos as belas e tocantes histórias bíblicas, não procurando nelas a Palavra de Deus, muito provavelmente não a ouviremos. Certamente não encontraremos, também, a Palavra de Deus quando lemos a Bíblia para usá-la em favor de nossos argumentos. Não estaremos ouvindo a Palavra de Deus quando fazemos Deus falar as nossas idéias. Estaremos fazendo, então, uma leitura fundamentalista, subjetiva, manipuladora da Bíblia.
Quando a Igreja diz que as Sagradas Escrituras contêm a Palavra de Deus, precisamos fazer um esforço consciente para concentrar-nos no conteúdo da Bíblia. Só assim teremos a alegria de perceber e experienciar a Palavra de Deus. Esta nos apresenta como grande conteúdo o próprio DEUS.
7 – A Bíblia, antes de ser escrita, foi vivida e contada oralmente
Essas experiências recebem uma interpretação à luz da fé. E o Povo reconhece em determinados acontecimentos a intervenção do seu Deus, o Deus Salvador. O acontecimento fundante é o Êxodo, e sobre ele é feita uma reflexão teológica.
Assim, por exemplo, no século XIII a.C., um grupo do povo de Israel está escravo no Egito. Surge um líder, Moisés, que conduz este grupo para fora do Egito, atravessando o deserto, numa longa peregrinação rumo à Terra Prometida. Aquele grupo de pessoas experimenta a força salvadora e libertadora de Deus, e passa esta experiência a todo o Povo de Deus. Aquele acontecimento do Êxodo, e a sua interpretação teológica, são guardados na memória do Povo, e transmitidos boca-a-boca, oralmente, de geração em geração. O Espírito Santo já atuava então, orientando a História, orientando a sua interpretação, e garantindo a fidelidade no relato.
O tempo passa. Estamos no século XI a.C. É o período dos JUÍZES (1200-1020). A vida das 12 tribos de Israel, até o início da Monarquia. Tempo cheio de dificuldades. Conflito entre a fidelidade a Javé e o culto aos ídolos. Ruptura da Aliança, quebra da consciência histórica. Os Juízes eram os “governadores” das tribos, chefes carismáticos. Era cargo vitalício.
O Povo de Deus, já estando na Terra Prometida, continuava conquistando esta terra, ainda não tinha a sua posse total. Nesta conquista faz novas experiências da presença e intervenção de Deus em seu favor.
Olhando para o passado, o povo de Israel vai aprofundando a compreensão de tudo aquilo que já viveu. Faz o que nós hoje chamamos de releitura dos acontecimentos do Êxodo, da libertação da escravidão do Egito, à luz de suas novas experiências de fé. E o Espírito Santo se faz presente, não só orientando a história e garantindo a fidelidade no relato, mas, também, orientando esta releitura dos acontecimentos. Tudo isso é juntado ao patrimônio de fé do Povo de Deus, e repassado às novas gerações.
8 – A Bíblia, depois de contada oralmente, começa a ser escrita
A Bíblia é, pois, um livro de confissões de homens e mulheres do passado, que tiveram uma experiência viva de Deus. A Bíblia é o testemunho de uma experiência. E da intensidade dessa experiência, brotaram as palavras que constituem o texto da Bíblia.
Ela é um livro de testemunhos. Suas palavras apontam para uma experiência vivida, e nos convidam para irmos além do texto, para onde o texto aponta, para o seu real significado9 – O autor da Bíblia
Tudo isso não se fez num dia. Foi um longo processo que durou séculos. Muita gente colaborou. A Bíblia, portanto, surgiu aos poucos como fruto da inspiração divina e do esforço humano. Ela é o resultado final de uma longa caminhada, fruto da ação de Deus que quer o bem das pessoas, e do esforço dos homens que querem conhecer e praticar a vontade de Deus. Ou seja, a Bíblia é o fruto de um prolongado “mutirão” comunitário do povo que procurava descobrir, praticar, escrever e transmitir aos outros a Palavra de Deus presente na vida.
10 – Podemos comparar a Bíblia a um jornal
Ora, quem garante essa unidade da linha editorial é a pessoa que cuida do jornal, como um todo, e que menos aparece: o editor-chefe ou diretor de redação. Ele não costuma assinar artigos, reportagens ou editoriais. Mas é ele o responsável pela linha editorial do jornal.
Da mesma forma, o editor-chefe da Bíblia é Deus. Os nomes dos jornalistas, articulistas e repórteres são Moisés, Davi, Isaías, Lucas, Paulo, João, Tiago, etc. São estes alguns nomes que aparecem assinando os textos bíblicos. Mas quem inspirou tudo, quem garantiu a unidade e a harmonia de seu conteúdo, foi o próprio Deus. É Ele o principal autor da Bíblia.
11 - A inspiração bíblica
Na redação do texto bíblico, o escritor humano teve a sua contribuição. Cada pessoa tem o seu estilo próprio, escrevendo de um modo todo particular. O autor bíblico, quando escreve, não está inconsciente nem a sua mão é conduzida por Deus, de maneira a escrever aquilo que não está pensando. Pelo contrário, o autor bíblico está plenamente consciente do que escreve, escrevendo do seu jeito, com o seu estilo, usando os gêneros literários de que mais gosta. A personalidade do autor sagrado é respeitada e a sua contribuição é importantíssima. Ele transmite, de modo humano, à sua maneira, a verdade que Deus quer revelar-nos. Não é possível, pois, entender a “inspiração” do texto bíblico como se fosse ditado por Deus, ou como se o autor sagrado ouvisse uma voz do alto, a voz de Deus, dizendo o que deveria ser escrito. Não que Deus não pudesse falar, e que não tenha falado, algumas vezes, diretamente. Quando encontramos na Bíblia as expressões “o Senhor me falou”, “ouvi o Senhor que me dizia”, nos deparamos com um recurso literário. O mesmo se pode dizer em relação às visões. É indiscutível que Deus possa aparecer ou provocar visões, mas, na maioria dos casos, elas são também um recurso literário para dar mais força à mensagem. São famosas, por exemplo, as visões do Apocalipse. Seu autor (São João) faz uso desse tipo de relato, porque as visões fazem parte do gênero literário apocalíptico. O importante é descobrir o que o autor quer transmitir na forma com que escreve.
O autor humano que escreve, sob a inspiração divina, o Livro Sagrado, também se expressa, colocando algo de si mesmo, do seu modo de ser e de ver as coisas. A vivência profunda da experiência de Deus, feita pelo seu Povo, também está ali colocada. Em vista disso, há um forte apelo. É Deus quem apela à humanidade, chamando-a a viver da sua vida. E é o autor humano que apela aos seus leitores, chamando-os à conversão, animando-os e exortando-os a seguir em frente.
Importa ressaltar que a inspiração divina se restringe, unicamente, à matéria de caráter religioso, àquilo que se relaciona com a nossa salvação. Não é intenção da Bíblia, portanto, ensinar história, geografia, biologia, ciência..., mas religião, teologia. O grande perigo é de a gente ler a Bíblia como quem lê um livro de receitas científicas (como foi criado o universo, como surgiu a humanidade sobre a terra, como se movem os astros no céu, como está organizado o universo, etc.?); ou como quem lê um livro de receitas históricas (como viviam os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, como aconteceram exatamente as dez pragas do Egito, como foi mesmo a travessia do Mar Vermelho, como foi a infância de Jesus, como vivia a comunidade cristã primitiva, etc.?); ou como quem lê um livro de receitas morais (como devo agir em qualquer situação possível e imaginável da minha vida...?); ou como quem lê um livro de receitas teológicas (neste caso estaríamos olhando a Bíblia como palavra sobre Deus, e não como Palavra de Deus).
12 –Lista dos livros inspirados
Lidos e relidos nas reuniões e nas celebrações do povo, esses livros foram adquirindo, aos poucos, uma grande autoridade. Tornaram-se o patrimônio sagrado do povo de Israel, porque lhe revelavam a vontade de Deus. Daí vem a expressão Sagrada Escritura.
Nós usamos a palavra lista, eles usavam uma palavra de origem grega, cânon (= norma, lista). Por isso, até hoje, se fala em livros canônicos para indicar a lista, o cânon dos livros sagrados, considerados inspirados por Deus. Esta lista de livros sagrados recebeu, mais tarde, o nome de Bíblia (ela nasceu sem nome).
Qual a diferença entre a Bíblia protestante e a Bíblia católica? A diferença provém da Bíblia hebraica, da Palestina, e a Bíblia grega, do Egito (Alexandria). Os rabinos judeus fixaram no ano 100 d.C., no Sínodo de Jâmnia (a 20 km ao sul de Jafa) a lista (cânon) dos livros do AT que eles consideravam inspirados por Deus. Foram aceitos somente os livros escritos na Palestina, em língua hebraica. Os protestantes, portanto, preferiram adotar a lista mais curta e mais antiga; já os católicos, seguindo o exemplo dos Apóstolos, ficaram com a lista mais comprida da tradução grega dos Setenta, a Septuaginta.
Há sete livros a menos na edição da Bíblia dos protestantes: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria e os dois Livros dos Macabeus. Estes Livros são chamados “deuterocanônicos”, isto é, são da segunda (deutero) lista (cânon).
São considerados livros “apócrifos” aqueles que não constam nessas listas, e que, portanto, não são considerados inspirados por Deus.
13 – Quando foi escrita a Bíblia?
14 – Em que língua foi escrita a Bíblia?
Durante o século II a.C., quando o povo judeu se achava espalhado por muitos países, os “Setenta” fizeram a tradução da Bíblia completa para o grego, em Alexandria, no Egito (a Septuaginta).
Pelo fim do século V d.C., quando o povo do Império Romano não entendia mais o grego, o Papa Dâmaso encarregou o monge Jerônimo (340-420) para fazer a tradução da Septuaginta para o latim vulgar (popular), então falado. Em 406 d.C., São Jerônimo entregou ao Papa a tradução latina da Bíblia, a assim chamada Vulgata. A partir dessa tradução oficial deveriam ser feitas todas as demais traduções da Bíblia.
Como reação contra a Reforma protestante, por 1570, proibiu-se a tradução e o manuseio da Bíblia, em vernáculo, para os leigos em geral. Esta proibição durou dois séculos, até o ano 1770.
Os papas, a partir do final do século XIX, passaram a estimular o uso e o estudo da Bíblia, especialmente do NT. No início do século XX foi fundado, em Roma, o Instituto Bíblico, todo ele voltado a essa tarefa, formando centenas de biblistas e exegetas. Em 1943 o Papa Pio XII publicou a encíclica “Divino afflante Spiritu”, que abria as portas para o estudo moderno e científico da Bíblia. O Concílio Vaticano II lançou o documento “Dei Verbum” sobre a Revelação e a Bíblia. Estes dois documentos provocaram uma renovação geral do estudo da Bíblia que é, atualmente, o centro do ensino da teologia, da pregação, da catequese e da liturgia. Por isso, hoje, não é cristão quem não adquire conhecimentos atualizados da Bíblia, e quem não a lê e sabe usá-la adequadamente.
15 - Gêneros literários
Se vamos comparar os diversos livros da bíblia entre si, notamos que existem muitas diferenças, não só no conteúdo que apresentam como, também, na forma e no jeito como o apresentam. Mesmo dentro de um livro, de capítulo para capítulo, existem diferenças. Por que acontece isto? Em primeiro lugar, porque a Bíblia não foi escrita por um só autor humano, mas por muitos. Sabemos que pessoas diferentes pensam e escrevem de maneiras diferentes. Em segundo lugar, porque os textos foram escritos em épocas diferentes, para pessoas (destinatários) diferentes, em situações diferentes, por autores diferentes.
O que determina a escolha de um gênero literário? Os autores bíblicos utilizaram diferentes gêneros literários para atingir melhor os fins que se propuseram. Assim, em uma situação de violação da Aliança feita com Deus, numa situação de opressão, cabe uma denúncia profética, e o autor bíblico usa o gênero literário da profecia. Numa situação de desesperança, talvez seja mais interessante olhar para trás, para a salvação que Deus realizou no passado, e que é garantia de salvação no presente, usa-se o gênero literário da narrativa histórica. Se a comunidade cristã está precisando de incentivo, envia-se uma carta (era o que fazia S. Paulo).
Um determinado gênero literário era usado, também, para que os ouvintes ou leitores entendessem e assimilassem melhor a mensagem. Um profeta, muitas vezes, colocava a sua mensagem na forma de poesia porque, além de dar à profecia a força das imagens poéticas, os versos eram mais facilmente guardados na memória do povo, e mais facilmente transmitidos.
O autor bíblico usará aquele gênero literário mais adaptado às suas características e à missão a ele confiada por Deus. Deus e os autores bíblicos humanos têm uma determinada intenção, uma determinada mensagem a transmitir e, para tanto, usam este ou aquele gênero literário.
Assim, os profetas escreverão ou pronunciarão profecias, e os livros sapienciais serão escritos pelos sábios, nos gêneros literários que lhes são próprios.
A palavra humana na Bíblia, muito mais que um impessoal relato de verdades históricas, científicas ou morais, reveste-se de calor e de arte. E, como arte, os seus autores utilizam vários gêneros literários, diversas formas de escrever: as formas próprias da literatura. É a literatura inspirada de um povo, nas formas singelas da poesia, da prosa e da dramatização.
Por isso, é importante levar em conta o gênero literário quando fazemos a nossa leitura da Bíblia. Caso contrário, podemos entender erradamente a mensagem e a intenção de quem quer comunicar-se conosco, o próprio Deus. Imaginemos a decepção de um namorado ao descobrir que a carta de amor, enviada á sua namorada, foi por ela entendida como um tratado filosófico sobre o amor. Pode parecer incrível, mas é isto que fazemos, muitas vezes, ao lermos a Bíblia, que é uma grande carta de amor de Deus à humanidade.
16 - A Bíblia é um livro diferente
A Bíblia não é um livro do passado. Não é uma relíquia. É um livro sempre atual. É palavra viva para os dias de hoje. Nós podemos descobrir-nos na Bíblia. Lendo a Bíblia, descobrimos que ela tem muito a ver com a nossa vida. Ela revela a nossa origem, nosso destino, nossa identidade, nosso caminho, nosso valor. Nela descobrimos o significado dos acontecimentos e o sentido da vida humana, a presença constante e amorosa de Deus na história da humanidade.
A Bíblia aconselha, exorta, repreende, questiona, julga, ilumina, educa, alimenta, ensina, corrige, critica abusos, denuncia erros e desvios, aponta rumos, indica caminhos.
17-Como ler a Bíblia hoje?
Hoje devemos ler a Bíblia de tal maneira que ela seja capaz de oferecer uma visão de fé sobre a nossa realidade, e descobrir nela o apelo de Deus para a nossa realidade.
Precisamos descobrir uma maneira de interpretar a Bíblia corretamente. A interpretação da Bíblia não depende só da inteligência e do estudo, mas também do coração e da ação do Espírito santo. Ela deve ser lida e interpretada na fé de que Deus nos fala por meio dela. Por isso, a leitura da Bíblia necessita de momentos de silêncio e de oração.
Para escutarmos a Palavra de Deus, através da leitura da Bíblia, necessitamos de uma atitude exterior de silêncio e uma atitude interior de fé. A fé é a chave para abrir a Bíblia e encontrar nela a Palavra de Deus. Quem tem fé enxerga na Bíblia mais do que as histórias que ela conta. Enxerga nela a Palavra de Deus. Ali é Deus quem nos fala através de palavras humanas, as únicas, aliás, que somos capazes de entender. A leitura da Bíblia exige óculos especiais para ser entendida: os “óculos da fé”.
É preciso, também, uma atitude de abertura: esta é um estado de espírito, uma atitude interior. Não podemos dirigir-nos à Bíblia com preconceitos, com idéias já formadas, definitivas, sem disposição de ouvir. Como poderá Deus plantar em nós a semente de sua Palavra se estamos fechados e apegados ás nossas próprias idéias.
É necessária, ainda, uma atitude de aceitação: esta já está, aliás, inerente à própria fé. Deus, porém, respeita a nossa liberdade. Ele nunca força ninguém a nada. Ele apenas propõe. De nossa parte é importante aceitar as suas propostas. Esta aceitação implica, muitas vezes, em abandonar as próprias idéias e projetos para acolher as idéias e abraçar os projetos de Deus.
Somente através dessas atitudes chegaremos ao verdadeiro conteúdo da Bíblia: DEUS.
A) COMO LER A BÍBLIA
1. ao pré-texto, isto é, a toda aquela realidade de vida que motivou e condicionou o texto bíblico;
2. ao texto: como o temos na Bíblia;
3. ao contexto: isto é a realidade concreta em que nós vivemos, como homens de fé, participantes de nosso tempo.
a) Pré-texto bíblico
Para interpretar e compreender corretamente um texto da Bíblia é preciso conhecer o pré-texto, isto é, tudo aquilo que preexistiu ao texto e foi motivo para elaboração do texto bíblico. Não há pensamento que não esteja situado. Todo o escrito traz as marcas do seu tempo, da perspectiva em que foi proferido. Descobrir o pré-texto é importante para descobrir o sentido do texto e da Palavra de Deus, pois ela é palavra para uma situação concreta. Para isso são importantes perguntas como estas:
· A quem foi escrito este livro (ou carta)?
· Quando foi escrito?
· Qual era o quadro de fundo, isto é, a situação que era enfrentada?
· Qual é a resposta que o texto dá para essa situação vivida?
b)Texto bíblico
É bom observar que cada escritor da Bíblia teve uma razão particular para escrever o seu livro. Ao desenrolar a sua argumentação, há conexão lógica entre um parágrafo e outro. Precisamos encontrar o propósito global do livro a fim de determinar o sentido das palavras ou passagens particulares no livro. Estas e outras perguntas nos ajudarão nesta tarefa:
· De que fala o texto?
· O que ele está afirmando?
· Quais os argumentos que o autor utiliza para expor idéias?
· Como esta passagem que estamos meditando se relaciona com o texto anterior e posterior?
· Qual a mensagem que o autor quer nos comunicar?
c) Contexto atual
§ Qual é a realidade que estamos vivendo?
§ Quais são seus grandes problemas, seus desafios?
§ Qual é a Palavra de Deus para esta nossa situação concreta?
Em suma, este processo de compreensão de leitura da Bíblia, pode ser assim entendido: estimulado pelos problemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que é lida dentro de uma comunidade de fé (contexto)
Por isso vamos ver como o povo de Deus usava a Bíblia. A Bíblia contém dois mil anos de caminhada de Deus com o seu povo. Deus mostrou-se presente na história de seu povo e o povo foi registrando os acontecimentos nos livros que compõem a Bíblia. Os 73 livros que estão dentro da Bíblia foram escritos num período de 1400 anos, isto é, 1300 AC, até o ano 100 DC.
B) REVELAÇÃO DIVINA
1 – Deus se revela e age na história
Esta atuação de Deus dá-se na História, que se torna História da Salvação. Ela começa nos primórdios da humanidade, passa pela história do povo de Israel, o Povo de Deus, no Antigo Testamento, e atinge o seu ponto alto em Jesus Cristo, continuando nos dias de hoje, até o fim dos tempos. É o amor de Deus revelando-se na história humana. Esta História de Salvação consta do diálogo, por palavras e ações, entre Deus e a humanidade. Toda a vida humana é essencialmente diálogo de Deus com a humanidade. A Bíblia surge desse e nesse diálogo: o diálogo entre Deus e os homens.
A Palavra de Deus, contida na Bíblia, é chamada também de “Revelação”, porque nela Deus “tira o véu” e mostra-se a nós com a finalidade de estabelecer vínculos de amizade e união conosco. Deus, através da sua Palavra, quis fazer-nos participantes de sua própria vida. Deus nos fala na Bíblia para revelar-se a si mesmo, seu projeto de amor e salvação. A Bíblia apresenta a revelação de Deus na história humana. Ela nos revela o que Deus é para nós e o que somos nós para Ele.
2 – Duas formas de Deus revelar-se, de falar conosco
Mas nós, homens e mulheres, por causa dos nossos pecados, embaralhamos as letras desse “livro”, organizamos o mundo de tal maneira, e criamos uma sociedade tão desvirtuada, que já não é mais possível perceber,, claramente, a Palavra de Deus que quer revelar-se dentro da vida que vivemos. Por isso, Deus escreveu um segundo livro: o LIVRO DA BÍBLIA.
Este segundo livro não veio substituir o primeiro. A Bíblia não veio ocupar o lugar da Vida. Antes, pelo contrário, a Bíblia foi escrita para nos ajudar a entender melhor o sentido da vida que vivemos, a tirar os enganos, a consertar e a interpretar a realidade, a perceber mais claramente a presença da Palavra de Deus dentro da nossa história, a entender de novo o Livro da Vida.
Santo Agostinho resumiu tudo isso da seguinte maneira: “A Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrita para nos ajudar a decifrar o mundo, para nos devolver o olhar da fé e da contemplação e para transformar toda a realidade numa grande revelação de Deus”.
Quando olhamos a vida pelas páginas da Bíblia, vemos a vida pelos olhos de Deus. É como ver a estrada no mapa rodoviário. Então entendemos o começo, o meio e o fim, as vias preferenciais e os atalhos, os locais para abastecer o carro e o motorista. Através da Bíblia, Deus nos empresta seus olhos para que possamos entender melhor a estrada da nossa vida.
Dois fios são necessários para se acender uma lâmpada. Duas coisas são necessárias para que se acenda em nós a lâmpada da fé: Bíblia e Vida. A Palavra de Deus e a realidade da vida. O nosso maior defeito, hoje, não é a falta de reflexão sobre as coisas da fé, contidas na Palavra de Deus, mas sim a falta de conhecimento da realidade e a falta de reflexão sobre a realidade à luz da fé.
Não se pode separar a Bíblia da Vida e a Vida da Bíblia.
Por que a realidade da vida é tão importante para a gente poder entender a Bíblia? É porque a Bíblia não é o primeiro livro que Deus escreveu para nós. A Palavra de Deus não se encontra somente na Bíblia. Deus nos fala também através dos fatos, dos acontecimentos históricos.
Padre Ataliba Scheider
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